domingo, 10 de março de 2024

OPNIÃO: As prioridades da Ordem dos Médicos (Eduardo Barroso)

 


As prioridades da Ordem dos Médicos

No jornal Público, há dias, veio sob a forma de artigo de opinião, uma carta subscrita por muitos médicos (alguns meus grandes amigos e que muito prezo), com o título “PELA QUALIDADE DOS CUIDADOS, DA MEDICINA E DO SNS”. Tive a amabilidade e o privilégio de receber essa carta antes da dita publicação, com o pedido de, eventualmente, a subscrever, mas não o fiz. E antes de tornar pública a minha resposta a esse pedido, gostava de fazer um ponto de ordem.

Não conheço bem a proposta de revisão do Estatuto da Ordem dos Médicos, vetada pelo senhor Presidente da República, com o argumento de que essa revisão pretende afastar a OM do processo formativo, e numa segunda leitura atenta dessa carta percebi que protestar contra essa revisão era o principal e único objectivo da mesma. Assim sendo, para a poder subscrever eu teria de ter um conhecimento profundo dessa proposta de revisão. Só não entendo e não concordo com a longa introdução, e foi essa que me levou a não a subscrever, como vão ler.

Até porque o papel que a OM se limita a dar na formação médica, através dos colégios das especialidades - o alvará da atribuição dos títulos aos serviços públicos que, de facto, os conferem -, é nomear um dos elementos do júri desse exame em que ninguém reprova. E esse papel é pouco ambicioso e muito pouco exigente, como ao longo dos anos tenho denunciado no que diz respeito à minha especialidade de cirurgião geral. Por isso respondi a quem me pediu que a subscrevesse:

“Li a carta com atenção e confesso que não a posso subscrever. Embora concordando com muito do que é escrito, a falta de autocrítica, e a assunção de que a OM não tem nenhuma responsabilidade na situação actual do SNS, é para mim um absurdo. A OM tem responsabilidades óbvias, quer aceitando numerus clausus em largos períodos da sua existência, não apostou como devia no prestigio e manutenção das carreiras médicas, acabou com os concursos à OM, chegando a certa altura a aceitar inscrições de especialistas depois de um concurso final de internatos sem exigência e sem valorizar o mérito. Propôs e aceitou grelhas burocráticas de avaliação que não só não premiavam os melhores, como eram facilmente impugnados os resultados. Nunca teve uma palavra na defesa dos Centros de Referência, nem nunca denunciou a competição desleal dos privados, ao poderem ir buscar os especialistas aos hospitais públicos, sem ter de indemnizar o Estado pelo esforço financeiro do custo dessa formação. Competia também à nossa Ordem, apoiar a permanência dos jovens especialistas formados nos hospitais públicos, um tempo de permanência obrigatória no SNS, antes de poderem aceitar trabalhar no privado ou no estrangeiro. Nunca vi a OM defender modelos organizacionais multidisciplinares, essenciais para a formação correta dos jovens especialistas. A OM, independentemente dos Governos eleitos, devia ter uma opinião sobre o regime de trabalho hospitalar, devia ter discordado do limite ridículo de 150 horas anuais extraordinárias. Também as exigências de números mínimos de composição das equipas, têm de ter a colaboração da OM, assim como ajudar a reformular o número e as características das Urgências. Muitas coisa mais poderia trazer à colação, mas mais do que escrever esta carta, em clima eleitoral, seria a OM abrir um grande debate entre os médicos e a sociedade civil, fora das lógicas partidárias, sindicais ou mesmo ideológicas, tentando contribuir, para que dessas conclusões, então saísse uma contribuição efectiva para a qualidade dos cuidados médicos que podemos oferecer quer no público, quer no privado. Décadas de erros, uma OM sempre mais corporativa que pró-activa nas necessárias mudanças, apregoar a qualidade sem nada propor para a implementar e aumentar, não me parece, na hora actual, uma prioridade. E, como já disse, esta carta, sem uma única autocrítica, sem uma única proposta, apregoando lugares comuns, em época eleitoral, não pode ter o meu acordo. Proponha-se um grande debate dentro da classe, aberto a todos os que quiserem participar, até com o patrocínio do PR, era uma iniciativa bonita e útil. Para isso podem contar comigo, e era a altura certa. Repor as carreiras com dignidade e dando-lhes prestigio, ajudando a reter os profissionais no SNS, combatendo a competição completamente desleal dos privados, obrigando-os a ter regras e não saquearem o público, modernizar a formação, prestigiar exames e concursos acabando com grelhas que envergonham e não premeiam os melhores. Tanto a fazer, tanto a mostrarmos que nos preocupamos com a qualidade. Tanto a prestigiar a Ordem a que orgulhosamente pertencemos. E, já agora, um pouco de autocrítica, os políticos, quaisquer que eles sejam, não são sempre os maus da fita. Cumprimentos e ao dispor do Eduardo Barroso.”

Comentário final: Todos sabemos que o SNS atravessa dificuldades imensas, agravadas - e de que maneira - pela falta de médicos. Essas dificuldades mais visíveis e evidentes nos Serviços de Urgência, são diariamente expostas em todos os telejornais, às vezes de uma forma alarmista e demasiado ligeira. Gostava muito de ver a OM, mais do que acentuar e repisar o que é óbvio, vir com propostas concretas e fazíveis para ajudar a ultrapassar as dificuldades actuais. E deve ser a primeira interessada em mostrar a sua total independência, numa altura em que, paradoxalmente, se considera satisfeita com os elevados padrões actuais da formação médica em Portugal.

Um dado final. Quando saí da Urgência do Hospital de São José, na altura na chamada UUC, e fui para Cambridge, operavam-se 16 doentes por dia, com equipas de 6 ou 7, às vezes 8, entre cirurgiões e internos de cirurgia. Hoje as equipas cirúrgicas têm o mesmo número de elementos, e operam-se 1,4 doentes por dia. É assim que se consegue formar cirurgiões competentes em Cirurgia de Urgência? Claro que o trabalho de um cirurgião na Urgência não é só operar, mas por que não discutir a sério se não é altura de criar uma sub-especialidade em Medicina/Cirurgia de Urgência? Cá está um assunto, entre muitos outros com que a OM se devia preocupar.

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