segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Opinião

O SNS arrancou o País do atraso
A saúde não tem preço
«A saúde não tem preço», diz o povo. Mas essa valorização primordial da Saúde, que teve como reflexo a massificação do seu acesso com a organização do Serviço Nacional de Saúde (SNS) após o 25 de Abril, pode ser olhada de formas diversas: como um bem colectivo cujo custo é partilhado por todos e assegurado pelo Estado ou como uma oportunidade de negócio para benefício de alguns.


As vantagens da primeira opção tornaram-se cada vez mais evidentes com o aumento do custo dos investimentos ligados aos avanços tecnológicos e à especialização e multidisciplinaridade da assistência médica.
De facto, só um serviço público universal e solidário pode garantir a protecção de cada um, partilhando, por todos, despesas individualmente incomportáveis. Para além disso, possibilita uma estratégia condicionada apenas pelo bem comum, impulsionando o investimento em áreas essenciais mas sem lucro imediato, como as da educação e prevenção.
Mas o reconhecimento da Saúde como primeiro bem aguça também os interesses em a explorar para benefício privado.
«É o melhor negócio a seguir ao das armas!» – disse à TV, num momento de exaltação, e por isso menos filtrado, Isabel Vaz, responsável da Espírito Santo Saúde.
Dominando os governos e os media, os grandes grupos financeiros procuram ocultar as vantagens dos serviços públicos de Saúde com uma miríade de argumentos: liberdade de escolha, melhor gestão, menos desperdício, atendimento mais individualizado, mais rápido, com profissionais bem remunerados e motivados. Enfim, uma vantagem para todos, se quisermos encher os bolsos dos grandes accionistas.
Nada disto é verdade, evidentemente.
A organização privada da Medicina tem como primeiro fim o lucro e, independentemente de se poder aí trabalhar honestamente, a lógica do sistema condiciona desvios perversos levando à marcação de exames e consultas desnecessários, perda da segurança e da qualidade em favor da adopção de soluções técnicas piores mas financeiramente mais rentáveis (por exemplo: percentagem de cesarianas aconselhável – 15 por cento a 25 por cento dos partos. Percentagem no SNS – 28 por cento. No privado – 67 por cento!...).*(1) .
E se os cidadãos se manifestam satisfeitos com o serviço público (mesmo que critiquem pontuais insuficiências), há sempre o derradeiro argumento do «é bom, sim, mas não é sustentável. Não há dinheiro!...».
Na realidade, nunca há dinheiro para tudo. É, pois, uma questão de prioridades. Mas quando os governos gastam (ou deixam de cobrar) milhares de milhões em benefícios fiscais ao grande capital, dando-lhe escandalosas «rendas» na energia e nas parcerias público-privadas e tapando, com fundos públicos, os buracos da escandalosa especulação financeira (BPN, BPP, BCP, SIRESP, Banif, BES, etc.), como podem dizer que não há dinheiro para a Saúde?
E se porventura não houvesse dinheiro para os serviços públicos, porque haveria de haver se fossem privados? Será que por se desviar parte dele para os bolsos dos accionistas, os euros crescem e se desmultiplicam?
As respostas a estas questões constituem, naturalmente, opções quanto à forma como queremos construir a sociedade e não uma questão técnica especificamente ligada à Saúde.
Mas aceitando o afastamento desse plano conceptual, podemos analisar o que a experiência histórica nos ensina.
Pioneiro como serviço público universal e gratuito (i.e.: pago pelos impostos através do Orçamento do Estado), o National Health Service (NHS) inglês, criado logo após a II Guerra, rapidamente colocou a Inglaterra na primeira linha dos indicadores de Saúde, granjeando um enorme prestígio.
Pelo contrário, os Estados Unidos, paradigma do modelo liberal e privado, apresentam ainda hoje um dos piores resultados, apesar de continuarem a despender quase o dobro da percentagem do PIB com a Saúde quando comparados com os países europeus – USA 16,9 por cento, Alemanha 11,3 por cento, Inglaterra 9,3 por cento, Portugal 9,5 por cento.(OCDE 2012) * (2)
Na realidade, os USA, o país mais rico do mundo, oferece à generalidade dos cidadãos serviços de Saúde de baixa qualidade, deixando fora do sistema e sem qualquer protecção mais de 50 milhões de pessoas.
Pode parecer, por isso, paradoxal que os governos europeus agora o queiram adoptar, porque basta ler os números para se perceber que um sistema privado é caro e ineficaz, beneficiando apenas um punhado de grandes empresas e não a grande maioria da população.
SNS desenvolveu o País
Em Portugal, a criação de um serviço público (o SNS), inspirado no NHS inglês, arrancou o País do atraso que o colocava no meio dos países subdesenvolvidos, guindando-o aos lugares cimeiros na assistência prestada aos cidadãos – 12.º do mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. À frente de um NHS já afectado pelas investidas liberalizadoras de Tatcher e de Blair (18.º), da Alemanha (25.º) e dos USA (37.º). *(3)
A mortalidade infantil passou, entre 1970 e 2010, de 58,6 por mil nascimentos para 2,5 (uma das mais baixas do mundo) e a esperança de vida aumentou 12,1 anos. Portugal foi o 2.º melhor dos 36 países da OCDE na evolução dos indicadores de saúde e o 2.º com menos crescimento de despesas entre 2000 e 2009. * (4).
Ao contrário do que é apregoado, os custos do SNS permaneceram sempre em valores significativamente baixos.
E embora o cidadão português gaste directamente do seu bolso quase o dobro (31,7 por cento) da média dos países da OCDE (19,1 por cento) em medicamentos, saúde oral e outros (fora do SNS), o gasto médio total em Saúde por habitante foi, em Portugal, de 1627 euros, muito inferior ao da Espanha (2139), metade do da Alemanha (3221), Suécia (3335) e França (3370) e três vezes menos que nos USA (5227). *(5)
Um feito notável. O SNS constitui uma das marcas mais relevantes da democracia portuguesa.
O SNS superou as acções isoladas, fragmentadas e caritativas dos médicos «João Semana» que percorriam vilas e aldeias de um País pobre, descalço e desdentado, com Misericórdias e Fundações dispersas e mal equipadas e a assistência hospitalar concentrada em Lisboa, Porto e Coimbra, onde todos (excepto os que tinham atestado de pobreza) pagavam a despesa. Em vez disso criou uma rede bem organizada de Centros de Saúde que, com as suas extensões, passaram a assegurar cuidados primários de boa qualidade, ligados a Hospitais Distritais e Centrais com serviços gratuitos, competentes e diferenciados.
As chamadas «Carreiras Médicas» estruturaram a progressão nos diversos graus do percurso profissional dos médicos, com tabelas de remunerações para os diversos patamares e provas de avaliação com júris e grelhas curriculares exigentes, obrigatórias em todos os concursos de graduação e de provimento para o quadro dos Serviços hospitalares (validadas pela Ordem dos Médicos), passando a constituir uma referência na qualidade de formação a nível europeu.
Processos similares ocorreram com as carreiras de enfermagem e de outros técnicos e profissionais, garantindo a segurança e a estabilidade de emprego necessários ao contínuo aperfeiçoamento, possibilitando o estabelecimento de uma correcta hierarquia técnico-científica.
Nas duas primeiras décadas do SNS, os Serviços cresceram e diferenciaram-se com novas gerações já formadas nas Carreiras, os Conselhos de Administração e as Direcções Clínicas eram eleitos pelos profissionais das instituições, as Urgências eram asseguradas pelas equipas dos diversos Serviços, as próteses e ortóteses passaram a ser gratuitamente fornecidas. O único estudo consistente feito por Villaverde Cabral em 2002 quanto à satisfação com o SNS mostrava que 77,8 por cento dos cidadãos se mostravam muito satisfeitos ou satisfeitos com as consultas, cerca de 73 por cento com os Centros de Saúde, 61,9 por cento com as Urgências, 67,2 por cento com os cuidados globais, havendo entre 15 por cento a 25 por cento que não se mostravam satisfeitos nem insatisfeitos.* (6)
Segundo o relatório do Observatório Português para a Saúde de 2003, «estes números contrastam com a informação fornecida diariamente pelos mass media». E, citando Villaverde Cabral: «os títulos dos jornais reflectem bem a forma predominantemente negativa da cobertura mediática dos problemas de saúde na sociedade portuguesa… A representação negativa que a população, sobretudo aquela que não possui experiência pessoal dos serviços públicos de saúde, é levada a construir a partir dos mass media, pode ter os efeitos mais desencontrados». Na verdade, dos artigos de opinião analisados, 72 por cento tinham um cariz negativo.* (7)
Em conclusão: enquanto a grande maioria dos utentes do SNS estava satisfeita, os que nunca dele tinham necessitado eram críticos devido à propaganda negativa dos media.
O negócio da saúde
A campanha contra o SNS foi explorando alguns problemas reais que precisavam de ser resolvidos – subfinanciamento, listas de espera, dificuldade no acesso a consultas, acumulação de doentes nas urgências por deficiente coordenação dos Cuidados Primários com os Serviços Hospitalares – e outros inventados, como as campanhas televisivas de angariação de fundos para tratamentos no estrangeiro, com o silêncio cúmplice do Ministério da Saúde que, na realidade, garantia a evacuação dos doentes para fora do País sempre que os Serviços do SNS confirmavam a incapacidade do seu tratamento em território nacional.
As Administrações e Direcções Clínicas deixaram de ser eleitas «para tornar o SNS mais eficaz e profissional», e os problemas agravaram-se com a celebrada «empresarialização» dos hospitais e a sua descarada partidarização, que implementou falsas soluções, fez crescer a burocratização dos Serviços, deu prioridade à vertente administrativa secundarizando objectivos clínicos, falseou estatísticas, racionou medicamentos e implantes, cortou o fornecimento gratuito de próteses e ortóteses e implementou taxas moderadoras até para exames e tratamentos.
A suspensão dos concursos das Carreiras (enquanto um coro de vozes da área governamental bradava pela imperiosidade de avaliações…) bloqueou as provas para preenchimento do quadro dos Serviços, cuja delimitação se foi diluindo.
Foram encerrando Centros de Saúde e Serviços, implementaram-se desastrosas fusões de hospitais e entregas de unidades do SNS às Misericórdias, mas um dos aspectos mais gravosos do ataque ao SNS foi a introdução, no serviço público, da pior lógica dos sistemas privados, obrigando-o a investir em objectivos economicistas desviados do seu fim assistencial e humanista, correndo atrás de «lucros» virtuais conseguidos à custa do «cliente».
Com isso, cresceu o recurso desnecessário a serviços externos, a transferência de doentes em lista de espera (PECLEC, SIGIC) para os privados, financiando os grandes grupos (BES, Mellos, Médis, Lusíadas, Trofa e outros), que rapidamente ocuparam espaço no «mercado» da Saúde.
De 2002 a 2012 o SNS perdeu 3000 camas e a privada aumentou 1400.* (8)
Em 2014, os privados já tinham 30 por cento das camas hospitalares e asseguraram 30 por cento das consultas e 13 por cento das Urgências. (9)*
«O presidente da Associação Portuguesa de Hospitais Privados confirma que todos os parceiros privados registaram um crescimento assinalável em 2014 e atribui parte da oportunidade da melhoria às reformas que o SNS sofreu.» *(10).
«Só a ADSE contribuiu para mais de um terço da facturação dos grupos privados». *(11)
As Urgências, que eram asseguradas pelas equipas dos Serviços que garantiam a sua continuidade sem falhas, passaram a ser feitas por médicos externos contratados, frequentemente pouco familiarizados com as técnicas e as rotinas adoptadas e sem poderem dar apoio eficaz aos doentes internados (que nem conhecem) nem dar altas ao fim-de-semana. Terminado o turno, esses médicos vão-se embora, estando ausentes da Reunião de Serviço da manhã seguinte onde se deviam discutir os casos tratados – para análise crítica das soluções adoptadas e a sua aprendizagem pelos mais novos –, dificultando também o planeamento atempado do que possa ter ficado por resolver.
A situação piorou ainda mais quando passou a ser obrigatória a sua contratação através de empresas intermediadoras, que usam a mão-de-obra mais barata do «mercado», arrecadando a parte de leão do negócio. Vantagens? Para o SNS, nenhuma. Tudo ficou pior. Para os médicos, desmotivação, precariedade e baixos salários. Para as empresas, a quem o Estado paga fortunas, mais um banquete à mesa do Orçamento.
As Urgências são, por isso, um bom exemplo de como se transformou a prática médica de alguns sectores do SNS num conjunto de actos fragmentados, dependentes de regras irracionais e números ilusórios, prejudicando a formação e a investigação clínicas, dificultando a criação do espírito de equipa e o trabalho multidisciplinar, fazendo aumentar, sem proveito, os gastos do Estado.
A desestruturação agora observada em alguns hospitais foi, em primeiro lugar, causada pela diminuição de camas hospitalares (cerca de 700 só em 2014) * (12), pelo encerramento de Centros de Saúde e pela «externalização» das Urgências para empresas, na linguagem inventada dos «spin doctors» do poder.
Com a cascata de cortes sem critério, começou a faltar tudo: médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares, material. Em contrapartida não faltam leis e regulamentos que coarctam a crítica e a participação democrática, fazendo com que os profissionais do SNS evitem dar a cara para denunciar o que está mal. Só desfocados, encapuzados ou de costas e com a voz distorcida, parecendo traficantes de droga ou imigrantes clandestinos, como em recentes telejornais da RTP e da TVI.
Enquanto o SNS abana, a grande Privada – ainda tecnicamente débil e sem a capacidade assistencial do SNS – prospera, conseguindo de forma continuada uma rentabilidade anual de dois dígitos, «batendo todos os recordes» em 2014 – 15 por cento a 20 por cento. *(13)
Mas o mais perverso é que o caos nas Urgências, parecendo prejudicar a imagem de um ministro que tão bem cuida dela, acaba por beneficiar os grandes privados e a estratégia global do Governo, desprestigiando o SNS e afectando a confiança que os cidadãos ainda nele justamente depositam. Na realidade é um prémio dado ao infractor, e o crime pode compensar se não nos mobilizarmos para o impedir.
E é isso que todos os cidadãos devem fazer. Porque a saúde não tem preço.
 
1Comissão Nacional para a Redução da taxa de cesarianas – Público, 19-1-15
2OCDE 2012 – últimos dados conhecidos
3 – OMS – relatório de 2001 – último ano em que foi publicado o ranking
4 – Relatório da OCDE 2011
 5 – Relatório da OCDE 2012 – últimos dados conhecidos
6Villaverde Cabral, «Saúde e doença, em Portugal», Lisboa, ICS, 2002
 7 – Relatório da Primavera do Observatório Português da Saúde 8 – INE – D. Notícias 5-4-2012
9 – Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP) – Público 12-1-15
10 – Público 12-1-15
11 – Diário Económico 8-1-14
12 – Público 12-1-15
13 – Presidente da APHP – Público 23-8-14

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