https://www.dn.pt/sociedade/vales-para-cirurgias-mais-rapidas-sao-recusados-por-80-dos-utentes-16144364.html
Medida foi criada em 2004 para limpar listas de espera e garantir respostas em tempo adequado. O Estado convencionou acordos com hospitais privados e sociais, mas os resultados estão aquém do esperado. Ministério da Saúde está a trabalhar para melhorar o vale cirurgia e como este funciona.
Maria e Filipe, de 57 anos e 80, respetivamente, são utentes de um hospital central na cidade de Lisboa do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Não se conhecem, mas em março ambos receberam uma carta do SIGIC (Siste- ma Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia) com um vale-cirurgia, para poderem resolver o seu problema de saúde em unidades dos setores privado ou social. O objetivo deste vale é garantir aos utentes que não ficam em lista de espera mais do que o tempo adequado, na maioria dos casos 180 dias, mas ambos tiveram de recusar o vale. Não são os únicos. Só no ano passado, segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) quase 80% dos vales emitidos foram recusados.
Os motivos de Maria e Felipe são também comuns às recusas de outros doentes: a distância a que ficavam as unidades onde poderiam ser intervencionados. E, embora ambos tenham patologias diferentes, as unidades indicadas eram praticamente as mesmas, no norte e centro do país. O Estado apoia o custo do transporte do doente, mas, na maioria dos casos, tal como Maria e Filipe, precisavam de ir acompanhados. "Não é só o tempo para a cirurgia, é preciso contar também com o tempo a que se leva a fazer os exames para a cirurgia e depois o controlo pós-cirurgia e isto representa muitas despesas", argumenta Filipe Sousa, que depois da recusa voltou a integrar uma lista de espera com 141 homens à sua frente. Maria voltou para uma lista com 570 mulheres à sua frente.
O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, reconhece que "como princípio e garante do acesso aos cuidados, o vale-cirurgia faz sentido, mas pode ser melhorado", embora, na sua opinião, "o ideal é que o doente seja tratado na unidade onde é acompanhado". O Ministério da Saúde respondeu ao DN que esta e outras medidas estão a ser equacionadas e avaliadas para se poder melhorar o sistema.
Mesmo assim, no ano passado e apesar de a taxa de aceitação ser baixa, o Estado gastou mais de 43 milhões de euros com os vales e mais de 45 milhões, em 2021. Além do ato cirúrgico, o Estado tem de custear exames e tratamentos pós-cirurgia, bem como as despesas de transporte do doente.
O presidente da APAH destaca: "A medida pode não ficar mais barata ao Estado, mas em termos de salvaguarda do direito ao acesso à saúde e aos cuidados faz sentido". Ainda assim, não duvida de que "este dinheiro do Estado seria mais bem gasto no financiamento e na estruturação de equipas nos hospitais do SNS do que neste tipo de vale-cirurgia".
Para Xavier Barreto "uma cirurgia deve ser realizada no hospital que fez o diagnóstico ao doente e que o acompanha, mas, para isso, faz sentido que se incentive e estruture equipas e se dê autonomia aos hospitais para que o possam fazer".
Até porque, argumenta, "no final, estes utentes acabam quase sempre por esperar pela cirurgia nesses hospitais ou voltam para fazerem lá a recuperação após a intervenção noutra unidade". Ou seja, "do ponto de vista da continuidade dos cuidados e do processo em que o doente deve estar integrado, faz sentido que este fique no SNS, mas é preciso que, nos próximos anos, se criem as condições para que tal possa acontecer".
Hospital privado recusa vale, médicos que iam operar eram os mesmos do SNS A carta que Maria e Filipe receberam relembrava que, ao recusarem, regressariam à lista de espera e que, dentro de 25 a 30 dias, deveriam voltar a receber outra. Se voltarem a recusar o vale, não terão direito a mais nenhum e ficarão à mercê da capacidade e da lista de espera do hospital onde são acompanhados. Maria e Filipe assumem ao DN que se as opções forem as mesmas, para o norte e para o centro, não terão hipótese de aceitar.
Filipe Sousa, que já tem alguma dificuldade em movimentar-se, comenta mesmo: "Mais valia que o dinheiro que o Estado tem para gastar nas despesas de transporte com o doente para o norte ou para o centro o investisse nos hospitais em Lisboa para que a cirurgia pudesse ser feita aqui".
Filipe está na lista de espera para uma cirurgia à próstata desde outubro do ano passado, quando os médicos que o acompanham num dos hospitais centrais de Lisboa lhe fizeram o diagnóstico: "Próstata volumosa com bloqueio da bexiga e várias pedras com um a dois centímetros de tamanho", explica. Um diagnóstico que chegou após uma ida à Urgência que o atirou para o internamento durante cinco dias.
Filipe diz ter tido dores horríveis, mas que quando estabilizou voltou a casa e foi sempre acompanhado até à altura da marcação da operação, não imaginando que tivesse de ficar à espera. "Fiz todos os exames para ser operado ainda no meu hospital, desde análises, ECG, citologia, volumetria, etc. Depois disseram-me que tinha de ficar em lista de espera porque não havia capacidade para avançarem com a cirurgia. Ora isto é dinheiro deitado à rua, porque, quando me voltarem a chamar, certamente que terei de fazer novos exames."
Mas há outra situação que indigna Filipe Sousa. É que o vale que lhe chegou a casa, além de indicar clínicas e hospitais de Coimbra, Marinha Grande, Vila Verde e Leiria, tinha um outro em Lisboa e o qual contactou de imediato, mas "quando me perguntaram de que hospital vinha e quem eram os meus médicos disseram que não me podiam aceitar porque os médicos que me iam operar ali eram os mesmos que me acompanhavam no hospital do SNS. Ora se é assim, porque é que o vale indicava aquele hospital?", questiona.
Fonte da ACSS e o presidente da APAH explicaram ao DN que os hospitais "não interferem no processo do SIGIC e nada têm a ver com a seleção dos hospitais indicados no vale. O vale é emitido automaticamente pelo sistema informático ao fim de 180 dias após o doente" ter assinado o consentimento para a cirurgia e entrar em lista de espera.
"Os hospitais indicados, que normalmente são quatro a cinco, são aqueles com que o Estado convencionou serviços para a patologia do doente e que têm capacidade para resolver a sua situação o mais rápido possível. A lei proíbe que os médicos do mesmo serviço do hospital do SNS que não tem capacidade para operar um doente, o possam fazer no privado através do SIGIC", refere fonte da ACSS.
Xavier Barreto defende: "Não podemos aceitar que os médicos que tomam a decisão de fazer a cirurgia a um doente, mas cujo hospital não tem capacidade para a fazer no tempo adequado, sejam os mesmos que depois o vão operar no privado. Temos todos boa-fé, mas numa situação destas até poderia induzir a que o médico estaria a tirar proveito da situação no privado, o que não podemos aceitar" .
No caso de Filipe, o hospital de Lisboa que o recusou tinha uma espera de 45 a 87 dias úteis, portanto, "também não seria operado tão depressa". Por outro lado, e esse foi um dos motivos da recusa do vale de cirurgia, Filipe fez em fevereiro uma artroplastia total da coxa, que o deixou a andar de canadianas.
"Tive de ir para o privado neste caso, porque foi uma situação de urgência e no público também não tinha vaga". Filipe explica ainda que este não foi o primeiro vale que recebeu. "Há uns anos fiquei em lista de espera para uma cirurgia às varizes, recebi o vale e vinham indicados vários hospitais, um deles em Lisboa, onde fiz todos os exames, fui operado e acompanhado após a operação. E correu tudo bem."
Hospitais deveriam assumir o encaminhamento do doente O presidente dos administradores hospitalares destaca uma das alternativas para resolver as recusas: "Em vez de termos um sistema como o SIGIC, em que o vale é emitido automaticamente, indicando a lista de clínicas às quais o doente pode recorrer, devíamos colocar essa situação na mão dos hospitais, serem eles próprios a encontrarem uma solução para o seu doente quando assumem que não vão conseguir operá-lo no tempo garantido. O hospital tinha de dar uma resposta via contratualização ou protocolo com outros unidades para encaminhar o doente".
Aliás, sustenta Xavier Barreto, "isto é o que já acontece com os exames de diagnóstico, como TAC, Ressonância, PET e outros procedimentos específicos, que os hospitais já têm contratualizados com os privados e outras unidades quando não têm capacidade para os fazer."
O administrador hospitalar reconhece haver uma "questão estrutural no SNS que está a levar à saída de muitos profissionais e a aumentar as listas de espera". No entanto, sublinha: "Se a emissão de vales- cirurgia tem diminuído nos últimos anos é porque os hospitais têm feito um grande esforço para que o doente seja intervencionado pela equipa que o acompanha".
Mas para que tal seja possível "é preciso criarmos condições para manter os profissionais mais motivados e conseguir retê-los no SNS. E isto passa, claramente, por mudar a forma como estamos a remunerar e a dar incentivos. Temos de acabar com o paradigma de salário igual para todos, independentemente do desempenho. Há que ter uma visão moderna de gestão que se faça repercutir no salário dos profissionais, tendo em conta o seu desempenho e a sua qualidade, e que dê mais autonomia aos hospitais."
Maria em lista de espera para acabar reconstrução mamária Maria passou os últimos dois anos em hospitais, a fazer cirurgias e tratamentos de quimioterapia e radioterapia. Em 2020, quando a pandemia começou, foi-lhe detetado um tumor na mama esquerda. Foi operada, começou os tratamentos e um ano depois, através de testes genéticos, acabaram por descobrir que, afinal, ela é portadora da mutação CHEK2, uma das que tem maior apetência para reincidência.
A médica propôs-lhe que "limpassem" o outro peito também para, depois, fazerem a reconstrução dos dois ao mesmo tempo. Maria aceitou. Em 2021, foi de novo ao bloco para ser intervencionada à mama direita e, em 2022, iniciou o processo de reconstrução no mesmo hospital onde é acompanhada na doença oncológica. "Fiz enchimento, até aqui tudo bem. Depois, foi a vez do mamilo esquerdo, mas correu mal. Três semanas depois estava a ir, de novo, ao Bloco de Urgência. Acabou por ficar bem, mas faltava o do lado direito e aí tive de ir para lista de espera", conta.
"Os médicos avisaram-me que a lista de espera para estas situações estava a aumentar e que, provavelmente, iria receber uma carta com um vale-cirurgia para terminar este processo noutra unidade, e que eu tinha de escolher", continua.
Mas Maria não tinha hipótese de ir para o norte, para Coimbra ou Leiria para ser operada. "Teria de levar alguém comigo e as despesas são elevadas", argumenta. Por isso, em março recusou o vale que lhe enviaram e não sabe quando vai poder terminar a reconstrução mamária que iniciou há um ano. "Não sei, se calhar só para o ano. O pior é que tenho dias que nem consigo olhar para mim", confessa. Maria tem 57 anos, já viveu situações de cancro com a mãe e a irmã. Agora, tocou-lhe a ela e "gostava que a reconstrução ficasse resolvida".
O presidente dos administradores hospitalares do SNS insiste que o que é preciso fazer para que os utentes sejam operados no hospital que os diagnostica é simples: "É importante que o governo concretize o investimento que está previsto nos hospitais, que dê mais autonomia às unidades para que estas possam contratar os profissionais de que necessitam e que altere o modelo como estes são remunerados. Isto está a ser discutido com os sindicatos, mas é fundamental que se chegue a algum lado".
Ministério diz continuar reforço de cuidados no SNS e que vales estão a ser avaliados O SIGIC é um mecanismo de acesso à saúde que foi criado em 2004 e, desde essa altura, já sofreu 11 alterações legislativas, a primeira em 2005, depois em 2007, 2008, 2010, 2012, 2013, 2014, 2015 (atualização de preços), 2016, 2017, 2018. Em resposta ao DN, o Ministério da Saúde reconhece que "é matéria que, naturalmente, está a ser tida em conta nos trabalhos que estão em curso no ministério em articulação com a Direção Executiva, no âmbito da atual reorganização do SNS, em que convergem medidas como o planeamento de novas Unidades Locais de Saúde e a criação de novos Centros de Responsabilidade Integrada (CRIs) nos hospitais, que entre outros objetivos visam promover atividade adicional em áreas com maior tempo de espera".
Mas defende tratar-se de um "mecanismos que tem permitido a promoção de atividade cirúrgica adicional nos hospitais do SNS, além da atividade contratualizada, e de transferência de doentes entre hospitais do SNS e entidades convencionadas para o efeito (vales-cirurgia)", contribuindo "em diferentes unidades e especialidades, para uma resposta dentro do tempo máximo garantido". No entanto, assume que a sua "utilização não é igual em todos os hospitais e em todos os momentos, por diferentes fatores, tais como a preferência dos utentes pelas instituições de origem, proximidade ou disponibilidade dos prestadores".
O ministério diz continuar "empenhado no reforço do acesso à prestação de cuidados de saúde no SNS, nomeadamente na vertente da resposta cirúrgica, garantindo qualidade, segurança e previsibilidade na resposta aos utentes" E relembra que, em 2022, houve "novo recorde de atividade nesta área, com 758 313 cirurgias realizadas nos hospitais do SNS, um aumento de 7% face a 2021".
Fique a saber O que é um vale-cirurgia?
O vale visa garantir uma resposta ao utente do SNS, sempre que este não tem capacidade para o tratar no tempo adequado, encaminhando-o para outra unidade privada, social ou pública. É emitido de forma automática pelo sistema central informático gerido pela ACSS quando o utente atinge 180 dias de espera.
Como funciona?
Ao fim do tempo máximo indicado para a espera, o utente recebe uma carta com o vale e com a lista de unidades a que pode recorrer para ser operado. No caso de uma doença oncológica o prazo é de 60 dias e o utente tem 22 dias para dizer se aceita ou não. Se aceitar, tem de aguardar a data de agendamento da cirurgia proposta pela unidade que escolheu.
O que acontece se o utente recusar?
No caso de recusa do vale, o utente entra de novo na lista de espera. Aguardará, então, que o chamem para o seu hospital ou receberá novo vale. Se recusar duas vezes, não tem direito a mais nenhum e fica à espera que o seu hospital resolva a situação.
Sem comentários:
Enviar um comentário