OPINIÃO: Mais que um dever (Eduardo Barroso)
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Mais que um dever
Completando o título desta crónica, diria uma obrigação. Atingir o topo da carreira médica hospitalar é uma ambição legítima de todos os profissionais, que depois pode culminar na direcção de um serviço ou departamento. Esta nossa carreira tem no entanto uma particularidade muito especial: desde o seu início até ao topo, acumula as responsabilidades assistenciais com assiduidade e competência com outras não menos importantes, as responsabilidades formativas, para garantir o futuro.
Vão sendo diferentes estas responsabilidades de formar os mais novos, de ajudá-los a progredir, e posso com o meu exemplo pessoal exemplificar melhor. Já como interno do internato geral, recém-formado, sentia a obrigação de ajudar os estudantes de medicina dos últimos anos que começavam a frequentar as urgências a integrar-se nas "rotinas" hospitalares, deixando que me acompanhassem nas minhas novas funções. Como interno da especialidade de cirurgia, tinha imenso prazer em ensinar os mais novos a dar os primeiros pontos para suturar feridas do couro cabeludo, assim como as primeiras anestesias locais. Essa obrigação de ensinar pelo exemplo, obrigava-me a ter de fazer eu próprio com total perfeição.
Longas noites no banco do Hospital de São José, na chamada sala de pequena cirurgia; adorava explicar cada passo do que fazia, desde desinfectar uma ferida, a anestesiar a mesma e depois escolher as suturas e realizar os pontos. Nos intervalos dos doentes, aproveitávamos os restos dessas suturas, para eles próprios, estudantes ou internos do geral, darem pontos nos lençóis e treinarem os nós. Com a progressão das minhas responsabilidades, ia tendo oportunidade de ensinar coisas mais complexas, ao mesmo tempo que os mais velhos me iam ensinando a mim. Esta dicotomia, entre o que eu próprio aprendia e o que podia transmitir aos mais novos era fascinante.
Já eu dava os primeiros passos como cirurgião, depois de ter ajudado centenas de cirurgias, levava sempre para o bloco operatório os mais jovens a quem reconhecia qualidades. Cheguei a ajudar um estudante do sexto ano que aguardava a entrada no internato geral a fazer a primeira operação, retirar um apêndice inflamado. Claro que com autorização do responsável máximo da equipa, depois de eu lhe ter garantido que ele estava preparado. Progressivamente, à medida que eu próprio ia progredindo, ia tendo oportunidade de ensinar situações mais complexas. Ao ensinar pelo exemplo, ensinei também com as minhas dúvidas e os meus erros. Muitos daqueles que trabalharam comigo, viram como me enganei com diagnósticos e testemunharam a chamada ao bloco dos mais velhos quando precisei. Tenho a certeza de que ensinei a ser humilde, a respeitar os doentes, a pô-los sempre em primeiro lugar.
O culminar das minhas responsabilidades como formador atingiu-se quando me considerei um especialista na cirurgia do fígado, das vias biliares e do pâncreas. Paradoxalmente, vivi o culminar dessas responsabilidades quando iniciámos a transplantação hepática no HCC. O paradoxo surge quando eu próprio era um principiante e o meu chefe me deu a responsabilidade de ensinar os mais novos. Como era possível eu, que ia realizar a primeira transplantação hepática, ir ao mesmo tempo ensinar a fazê-la? Mais uma vez, pelo exemplo. Recordo esse transplante como se fosse hoje, desde a incisão na pele até ao encerramento do abdómen. À medida que ia fazendo a intervenção, ia explicando cada passo e dizendo o que sentia, incluindo as minhas dúvidas e preocupações. Depois de muitos realizados, coube-me também a mim começar a ajudar os mais novos, esse progresso era vivido com enorme orgulho e satisfação. De que interessa começar aquilo que se veio a transformar no maior centro de cirurgia HBP do País, incluindo a transplantação, se depois da nossa retirada não houver quem continue e faça melhor?
A formação dos mais novos é uma obrigação dentro do SNS, por isso ele está estruturado com uma forte hierarquia de competências, traduzido na progressão das carreiras. A progressiva desvalorização dessas carreiras, diria mesmo a sua tentativa de destruição, foi um crime de lesa SNS. Mas mesmo assim, os profissionais médicos do SNS têm cumprido as responsabilidades formativas com maior ou menor dificuldade. Além de ter atingido o topo da carreira hospitalar, tive o privilégio de ter, ainda novo, responsabilidades de chefia, de direcção de serviço e de departamento. Aí as minhas responsabilidades atingiram outras áreas, nomeadamente a de tentar formar líderes que pudessem garantir o futuro. Identificar qualidades diferentes das minhas. Hoje não é possível liderar apenas pelo exemplo e pelos conhecimentos, é preciso identificar qualidades de liderança, que além de aspectos técnicos e teóricos, incluam qualidades de investigação, qualidades didácticas e de amor pela inovação. Não é por acaso que os grandes líderes da cirurgia internacional são hoje escolhidos por quocientes de inteligência e de emoção, sendo que este último é até mais valorizado. A capacidade de diálogo, a cordialidade e a compaixão não se ensinam, continuam inatas, mas precisam de ser identificadas.
Com a ajuda dos que ajudei, conseguimos formar muitos cirurgiões competentes dentro do SNS. Como última responsabilidade dentro do SNS, contribuí para a escolha de quem me deveria suceder. Não uma escolha directa, pois a legislação actual implica escolher entre aqueles que, pelo seu CV e pelo seu projecto, se candidatam ao cargo. E os antecessores não participam no júri dessa escolha. Acho que quando fui escolhido, com outras regras, o meu antecessor propôs à tutela e ao conselho de administração o meu nome. E quem saberia melhor a justeza dessa escolha do que aquele que comigo trabalhou décadas e observou no dia-a-dia? Quem melhor do que eu podia identificar, de entre os possíveis candidatos do próprio serviço ou de fora, aquele que poderia ser o melhor? Não abdiquei do dever e da obrigação de dar a minha opinião. Acho que cumpri até ao fim os meus deveres, o SNS, precisa de líderes que se assumam até ao fim. E que possam contribuir para que atrás de nós melhor se fará. Detesto o ditado popular que diz, "atrás de mim virá quem melhor de mim fará".
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