A pergunta que o Tribunal de Contas não fez
A opção por uma parceria público-privada «deverá justificar o value for money, isto é, evidenciar vantagens acrescidas, em relação à opção tradicional de financiamento directo, por via do Orçamento do Estado, e não ser alicerçada em motivações de índole orçamental relacionadas apenas com a contabilização off-balance sheet da dívida pública».
A tese é do Tribunal de Contas (TdC), que a inclui no seu manual «Linhas de Orientação (Guide Lines) e Procedimentos para o desenvolvimento de Auditorias Externas a PPP», pretendendo legitimar uma «boa PPP», por via das «vantagens acrescidas».
Contudo, partindo de uma perspectiva da classe dominante, o TdC não assume que qualquer PPP é, logo à partida, uma burla.
Admitir uma «boa PPP», com o privado a investir e o Estado a remunerar esse investimento, é uma posição que se desmorona, mal surge uma simples pergunta: porque não investe o Estado directamente?
É que, logo à partida, a «boa» remuneração que um privado obtém numa PPP é sempre maior do que a taxa de juro que o Estado pagaria pelo investimento público. Se assim não fosse, o «bom» privado não ganhava nada com a PPP e iria procurar outra fonte de lucro maior e mais rápido.
Pagar mesmo quando a obra não existe
O processo da subconcessão rodoviária do Algarve Litoral ainda está em tribunal arbitral, que já condenou a IP, cautelarmente, a pagar 49 milhões de euros, em 2021, e 14 milhões, em 2022. O pedido de indemnização global é de 445 milhões.
Tudo remonta a uma renegociação do contrato a que o Tribunal de Contas recusou o visto, pois os pagamentos ao Estado diminuíam de 168 para 28 milhões de euros. O contrato foi alterado e o visto acabou por ser dado.
Só que uma auditoria do Tribunal de Contas viria a revelar que os parceiros – os bancos financiadores, a Estradas de Portugal (IP, Infra-estruturas de Portugal, desde 2015, com a Refer) e o consórcio privado – tinham contornado o contrato, por via de um anexo sobre «compensações contingentes», que passavam a ser devidas praticamente sem condições. A IP viu-se intimada pelo TC a deixar de pagar essas verbas e, ao mesmo tempo, condenada pelo tribunal arbitral a pagá-las.
Ninguém está preso, nem sequer julgado, e o dinheiro continua a fluir do Estado para os privados, mais uns milhões para alimentar os grandes escritórios de advogados.
O concessionário privado já recebeu milhões de euros de uma obra que não realizou.
O Algarve continua sem ver solucionado o problema da requalificação da EN 125.
Alta velocidade para «lucros esperados»
A PPP para a ligação ferroviária a Madrid, em alta velocidade, estava contratualizada com o consórcio ELOS, mas o Tribunal de Contas recusou o visto ao contrato.
O governo de Passos Coelho aproveitou para cancelar a empreitada e a PPP.
O parceiro privado recorreu a um tribunal arbitral e este decidiu que o Estado tinha de indemnizar o privado pelos custos do processo (o que se poderia considerar natural) e igualmente pela expectativa de lucros da ELOS.
Sem visto do Tribunal de Contas, o contrato não é válido. Como pode o Estado ser obrigado a indemnizar alguém por causa de um contrato inválido? É o que pergunta o Governo, no pedido de anulação da decisão do Tribunal Arbitral.
Só que os tribunais têm-se limitado a julgar a validade jurídica do recurso a um tribunal arbitral.
Já o facto de um privado receber 192 milhões por frustradas expectativas de lucros, ganhando 192 milhões por uma obra que não executou – só o PCP o tem achado escandaloso.
A ANA quer e o Governo dá
De 2013 a 2021, a ANA (Grupo Vinci) registou resultados líquidos positivos de 1110 milhões de euros, já incluindo o prejuízo de 79,7 milhões que registou em 2020, no pico dos impactos da pandemia sobre o sector aéreo.
Conseguiu uma remuneração do capital investido superior a 50 por cento!
Pois, apesar destes resultados, acha-se no direito de exigir mais 214 milhões para reequilibrar a concessão, por causa do ano 2020! E já informou que vai avançar para tribunal arbitral.
O Governo já está a ceder. Autorizou o aumento de 40 milhões de euros, por ano, nas taxas de segurança aeroportuárias. A isto soma-se a cedência aos interesses da multinacional no caso do novo aeroporto de Lisboa.
A PPP do Oceanário de Lisboa é talvez a mais extraordinária destas «parcerias».
O Oceanário estava construído e a funcionar, dava um lucro anual de cerca de 1,3 milhões de euros, cumpria a sua função pedagógica, científica, cultural e lúdica.
Em Julho de 2015, foi concessionado, por 30 anos, à Sociedade Francisco Manuel dos Santos (SFMS). Aaccionista maioritária do Grupo Jerónimo Martins (que em 2017 criou a Fundação Oceano Azul, a quem doou a concessão) pagou 114 milhões de euros, uma parte ínfima do custo da construção do Oceanário.
Na altura da concessão, foi anunciado o compromisso da SFMS de investir, a fundo perdido, 40 milhões de euros, nos primeiros dez anos, e de reinvestir no próprio Oceanário todo o resultado da concessão. Ou seja, recebeu um equipamento único no mundo, construído pelo Estado português, e ainda se vangloriou, como se estivesse a fazer um favor ao País!
Durante os primeiros quatro anos da concessão, o Oceanário teve lucros de 7,9 milhões de euros, e realizou um investimento de 11 milhões de euros, integralmente coberto pelas receitas próprias.
Chegados a 2020, a COVID-19 abateu-se sobre o funcionamento do Oceanário, que registou, em dois anos, um prejuízo total de 7,8 milhões de euros e reduziu o investimento para menos de um milhão de euros, nos dois anos.
Nada de «anormal», apesar de o facto ser de registar, principalmente por aqueles que acreditam que a gestão privada é imune a este tipo de percalços.
E, apesar do muito que prometeu quando recebeu a concessão, a empresa já colocou um pedido de reequilíbrio financeiro, exigindo ser compensada com um prolongamento da concessão por mais 19 anos e meio.
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