sexta-feira, 1 de setembro de 2023

OPINIÃO: "Risco cínico"

 

Risco cínico

Margarida Botelho

A en­tre­vista de Ri­cardo Mestre, se­cre­tário de Es­tado da Saúde, teve honras de pri­meira pá­gina do Pú­blico: «fi­nan­ci­a­mento do SNS será de­ci­dido em função do risco clí­nico das po­pu­la­ções.»

A ex­pli­cação vem nas pá­ginas in­te­ri­ores: «a po­pu­lação é di­vi­dida em três sub­grupos – sau­dá­veis, do­entes cró­nicos e casos com­plexos – e as uni­dades lo­cais passam a ser fi­nan­ci­adas em função disso, em vez de re­ce­berem apenas pela quan­ti­dade de actos que fazem.»

É na­tural que haja pri­o­ri­dades no aten­di­mento na área da saúde. De­se­jável, até: uma grá­vida não pode es­perar nove meses pela pri­meira con­sulta de saúde ma­terna, nem se pode deixar que uma cri­ança que ouve mal passe o mo­mento ir­re­pe­tível da aqui­sição da lin­guagem sem acom­pa­nha­mento.

Outra coisa é fazer disso cri­tério de fi­nan­ci­a­mento ou de ex­clusão. A co­meçar pelo facto, evi­dente, que quem é sau­dável pode deixar de o ser – ou não saber que já não é.

Mais do que ava­liar o «risco clí­nico das po­pu­la­ções» (o que quer que isso seja e que cri­té­rios in­ven­tarão para o medir), cor­remos na ver­dade o risco de ser a folha de Excel a pre­sidir a todas as de­ci­sões, e a von­tade de deixar a maior fatia de ne­gócio pos­sível aos pri­vados a so­brepor-se a tudo.

As ne­ces­si­dades a que o Ser­viço Na­ci­onal de Saúde tem de dar res­posta são mai­ores, como mai­ores são as pos­si­bi­li­dades que o de­sen­vol­vi­mento ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico abre à saúde e ao bem-estar dos seres hu­manos. Faz-se hoje exames que há meia dúzia de anos pa­re­ciam ficção ci­en­tí­fica, trata-se do­enças que eram sen­tenças de morte, evita-se pro­blemas que mar­caram as ge­ra­ções que nos an­te­ce­deram. E isso é um bem, um avanço, um sinal de de­sen­vol­vi­mento ci­vi­li­za­ci­onal. Não pode ser olhado como um custo.

Muito menos ser usado para pre­miar quem me­dique menos ou mais ba­rato, passe menos exames ou tra­ta­mentos. Essa per­ver­si­dade não é ad­mis­sível nem pró­pria de um SNS que cor­res­ponda às ne­ces­si­dades das po­pu­la­ções. E essa é a ver­da­deira in­tenção desta me­dida.

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