Risco cínico
A entrevista de Ricardo Mestre, secretário de Estado da Saúde, teve honras de primeira página do Público: «financiamento do SNS será decidido em função do risco clínico das populações.»
A explicação vem nas páginas interiores: «a população é dividida em três subgrupos – saudáveis, doentes crónicos e casos complexos – e as unidades locais passam a ser financiadas em função disso, em vez de receberem apenas pela quantidade de actos que fazem.»
É natural que haja prioridades no atendimento na área da saúde. Desejável, até: uma grávida não pode esperar nove meses pela primeira consulta de saúde materna, nem se pode deixar que uma criança que ouve mal passe o momento irrepetível da aquisição da linguagem sem acompanhamento.
Outra coisa é fazer disso critério de financiamento ou de exclusão. A começar pelo facto, evidente, que quem é saudável pode deixar de o ser – ou não saber que já não é.
Mais do que avaliar o «risco clínico das populações» (o que quer que isso seja e que critérios inventarão para o medir), corremos na verdade o risco de ser a folha de Excel a presidir a todas as decisões, e a vontade de deixar a maior fatia de negócio possível aos privados a sobrepor-se a tudo.
As necessidades a que o Serviço Nacional de Saúde tem de dar resposta são maiores, como maiores são as possibilidades que o desenvolvimento científico e tecnológico abre à saúde e ao bem-estar dos seres humanos. Faz-se hoje exames que há meia dúzia de anos pareciam ficção científica, trata-se doenças que eram sentenças de morte, evita-se problemas que marcaram as gerações que nos antecederam. E isso é um bem, um avanço, um sinal de desenvolvimento civilizacional. Não pode ser olhado como um custo.
Muito menos ser usado para premiar quem medique menos ou mais barato, passe menos exames ou tratamentos. Essa perversidade não é admissível nem própria de um SNS que corresponda às necessidades das populações. E essa é a verdadeira intenção desta medida.
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