Serviço Nacional de Saúde perdeu 200 médicos de família num ano
Por Alexandra Campos e Catarina Gomes (Público)
Doentes continuam a ser atendidos, mas a vigilância periódica está posta em causa, alertam especialistas. Jovens médicos entram na carreira a ganhar menos que na formação
Em Paialvo há quem espere dias só para renovar uma receita
Isto "foi só o início"
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Primeiro foi um clínico espanhol que regressou ao país de origem. Depois, outro médico conseguiu a reforma antecipada e abalou em Novembro. De uma assentada, o Centro de Saúde de Mondim de Basto ficou com "menos um terço" do efectivo, sintetiza Henrique Botelho, director executivo do Agrupamento de Centros de Saúde (Aces) de Terras de Basto. Enquanto não há luz verde das Finanças para contratar tarefeiros, os quatro médicos de serviço vão dividindo o trabalho. "As pessoas não deixam de ser atendidas, mas as actividades programadas, de vigilância, estão a ser prejudicadas", lamenta.
O clínico reformado de Mondim é um dos cerca de 400 médicos de família que em 2010 decidiram abandonar o barco antes do tempo, baralhando as previsões e antecipando os problemas em alguns anos. As notícias surgem com cada vez mais frequência: há falta de médicos nos centros de saúde, sobretudo nas periferias das grandes cidades. Os sindicatos que têm estado a esmiuçar as saídas, mês a mês, pelas listas que vão sendo colocadas no site da Caixa Geral de Aposentações, contabilizam já 441 perdas, desde Dezembro de 2009 até Fevereiro deste ano. A maior parte são médicos da região sul (212). No Norte aposentaram-se 116, no Centro, 113.
Fazendo as contas por alto, o vice-presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Família, Rui Nogueira, subtrai aos cerca de 400 que saíram no ano passado as dezenas que decidiram regressar entretanto e as entradas de cerca de 200 novos profissionais. O Ministério da Saúde só adianta que 26 por cento dos 140 médicos que aceitaram e foram autorizados a voltar são desta especialidade. O saldo entre saídas e entradas continua, pois, substancialmente negativo."E o problema é que já andamos com défices [de médicos de família] há muitos anos", frisa Rui Nogueira.
Consultas a "passo rápido"
Não há dados precisos sobre o número de pessoas que perderam o médico assistente no seu centro de saúde, até porque o processo de regresso de médicos continua e o de saída ainda não parou. A situação muda todos os dias. Veja-se o caso dos Aces do Oeste Norte, onde, das 20 reformas anunciadas, só se efectivaram cinco por enquanto. "Ainda vão sair 15 médicos", diz a directora, Teresa Luciano.
Ileine Lopes, directora do Aces de Loures, reconhece que desde Julho saíram cinco médicos mas a criação de Unidades de Saúde Familiar conseguiu captar clínicos do exterior e jovens profissionais e até reduziram em oito mil os sem médico atribuído - ainda assim, chegam quase aos 43 mil (num universo de 220 mil inscritos).
O certo é que, se antes se falava em cerca de 400 mil portugueses sem médico de família, a ministra da Saúde admitiu há dias que agora serão 500 mil. E se chegou a anunciar que em 2013 conseguiria dar um médico de família a cada português, Ana Jorge agora já reconhece que isso só deverá ser possível em 2015.
Luís Pisco, ex-presidente Unidade de Missão de Cuidados de Saúde Primários e actual médico de família na região das Caldas da Rainha, admite "que por cada um que se reforma são 1700 utentes que ficam sem médico" e esses são um contingente que fica reduzido às chamadas "consultas de recurso", que representam "uma sobrecarga para aqueles que já têm as suas listas". "Eu conheço os doentes da minha lista, nessas consultas não conheço as pessoas e a ficha clínica ainda não está no computador."
Perante este cenário, defende, ou se "limita administrativamente as pessoas que têm consulta", ou então "as consultas passam a ser cada vez mais rápidas para ver mais gente". Luís Pisco relembra um movimento recente em Espanha em que os utentes reclamavam pelo menos dez minutos de consulta, porque se constatou que estavam reduzidos a sete. Corre-se o risco de haver cada vez mais destas consultas "a passo rápido", o que impede a criação "da relação médico-doente".
Entrar a perder salário
Bernardo Vilas Boas, presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar, também diz que os utentes acabam "por conseguir resposta a situações agudas em consultas de recurso", mas "não conseguem vigilância periódica com ênfase na prevenção da doença e promoção da saúde e essa deve ser a grande função dos médicos de família".
Arnaldo Araújo, do Sindicato dos Médicos do Norte, diz que esta "sangria" tem outra consequência: estão a reformar-se os médicos mais graduados, o que leva a que deixe de haver "nos centros de saúde quem dê formação aos novos médicos". "Estão a sair os mais qualificados", reforça Jorge Silva, do Sindicato Independente dos Médicos.
E há um problema suplementar: os jovens que entram agora na carreira de medicina geral e familiar, preenchendo, em parte, o lugar dos que partem com a reforma, confrontam-se com uma perda de remuneração. Enquanto no internato (período de formação) ganham perto de dois mil euros brutos (com horários de 40 horas), quando se tornam especialistas perdem ordenado e ficam-se pelos cerca de 1800 euros (com um horário de 35 horas). "Antes recebia cerca de 1300 euros líquidos, agora recebo 1100", lamenta Inês Rosendo, colocada em 2010 no Centro de Saúde de Santa Comba Dão e que, tal como os seus colegas, faz uma horas em urgências hospitalares para compor o ordenado. "Muitos estão a ir-se embora por causa disto." Há quem mude de especialidade e até quem emigre para o Reino Unido, diz.
Para Bernardo Vilas Boas esta situação é o oposto do que deveria acontecer, que seria "tornar a carreira mais atractiva e motivadora" para tentar inverter o facto de, em Portugal, existir um médico de família para cada três especialistas hospitalares. "Devia ser ao contrário."
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